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Salema: processo mitodológico de criação na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT-SP)Luciana Lyra

LYRA, Luciana. Salema: processo mitodológico de criação na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT-SP). São Paulo: Universidade Estadual Paulista - UNESP; Profa de Artes Cênicas, do Depto. de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação em Artes Cênicas; Mestre da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT); Pós doutora em Antropologia (USP); Doutora e mestre em Artes Cênicas (UNICAMP). Atriz, encenadora e dramaturga. GT Processos de criação e expressão cênicas.

 

RESUMO

Em investigação de doutorado, atrelada ao projeto temático do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP), a pesquisadora elaborou um complexo de procedimentos de criação intitulado de MITODOLOGIA EM ARTE. Este modus operandi constitui-se enquanto procedimentos de cunhos ritualísticos e míticos, que fazem eclodir pulsões pessoais e universais dos artistas. Este complexo é um caminho que o artista aperfeiçoa o pluralismo das imagens colhidas nas experiências ditas artetnográficas em contextos de alteridade. A partir de experiências mitodológicas, foram criados os espetáculos Guerreiras (2009) e Homens e caranguejos (2012). Este trabalho visa descortinar o terceiro processo criativo advindo da Mitodologia, chamado de Salema - Sussurros dos afogados, desenvolvido em 2012, com a turma de formação 13, da ELT. Baseado na obra O Capataz de Salema, de Joaquim Cardozo e em experiências artetnográficas na Ilha do Cardozo-SP, Salema é fruto de uma interação polifônica entre aprendizes com eles mesmos e a com comunidade pesquisada.

 

Palavras-chave: Salema – Escola livre de Teatro de Santo André – Mitodologia em Arte

 

Vinte e três de julho de 2012. Uma ilha ameaçada pela onipresença do mar, que sobe. As redes de pesca. Um grupo de teatro e uma busca: a vida, ali. A sabedoria de quem anda no passo das marés. Encontros. A morte, pressentida pela presença de urubus, aos montes. Casebres. Peixes estendidos nos varais. As redes, por toda a parte. Nos muitos quilômetros de praia deserta, animais mortos, estendidos, comidos pelos urubus. O som de toda essa paisagem: o mar. O vento. E nada mais. (GARCIA, inédito, 2012)

 

A paisagem desvelada brevemente pelas impressões acima, traz-nos à tona parte fundamental do processo de criação do espetáculo Salema – Sussurros dos afogados, por mim dirigido, no contexto da turma de formação 13 dos aprendizes da Escola Livre de Teatro de Santo André-SP, grupo hoje intitulado Cia. Luzia de Teatro. O relato da atriz Stella Garcia diz respeito à jornada artetnográfica realizada no Pontal Leste na Ilha do Cardozo, em São Paulo, no ano de 2012. Leia-se jornada artetnográfica ou Artetnografia como procedimento da Mitodologia em Arte, ambos conceitos desenvolvidos em minhas pesquisas de doutorado em Artes Cênicas (UNICAMP/2011) e pós doutorado em Antropologia (USP/2013). 

A guisa de termos um panorama mais íntegro da trajetória da investigação e compreensão dos conceitos mencionados, faço adiante uma breve retrospectiva poético-temporal dos principais processos mitodológicos antecedentes ao Salema. 

Foi entre os anos de 2007 e 2010, que realizei o processo criativo do espetáculo Guerreiras, subsidiado pelo Funcultura-PE (2009) e Funarte-MinC (2010). Tal ação, parte de meu doutorado adveio, principalmente, por meio de uma experiência nomeada de Artetnográfica, com a comunidade de Tejucupapo, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. A experiência firmou-se entre os artistas envolvidos na montagem de Guerreiras e integrantes da comunidade, que também realizam um espetáculo, de temática afim, chamado A Batalha das Heroínas, o qual reconta um fato histórico sucedido em 1646, quando um coletivo de mulheres baniu os holandeses do distrito. Assim, podemos traduzir a Artetnografia como uma trama complexa concebida do contato entre artistas e comunidade, entre eus e alteridades. 

Como apontado anteriormente, a Artetnografia  toma parte da Mitodologia em Arte, por meio da qual o artista partícipe do processo cênico estreita seu laço com os sentidos do processo criativo. Como afirmo em outros escritos, a Mitodologia em Arte:

 

(...) não se constitui uma pré-fixação incondicional de práticas, mas procedimentos de cunhos ritualísticos e míticos, que possam fazer eclodir pulsões pessoais e, concomitantemente, universais dos artistas. Este complexo é um caminho em que o artista aperfeiçoa o pluralismo das imagens colhidas no seu trajeto antropológico, a partir de suas experiências artetnográficas. (LYRA apud BIÃO, CARREIRA, TORRES NETO (orgs.), 2012, p.118)

 

A Mitodologia em Arte é descendente de estudos da Antropologia do Imaginário (1990), de Gilbert Durand e da Antropologia da Experiência, de Victor Turner (1974), que indicam em seus campos de atuação, a vocação mitológica e ritualística, performática do ser humano. Destas perspectivas antropológicas, entende-se que a Mitodologia em Arte fomenta no atuante um estado dialógico com suas forças pessoais na relação consigo mesmo e com o campo artetnografado, num processo criativo em contínua  retroalimentação. 

Dando sequência à montagem de Guerreiras, entre 2010 e 2012, outro espetáculo foi gerado a partir destes conceitos, o Homens e caranguejos, com o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam e apoiado pelo Prêmio Proac de Montagem Teatral da Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, em 2012.  O espetáculo inspirado, primordialmente, no romance homônimo de Josué de Castro, surge também de jornadas artetnográficas realizadas no cotidiano de duas comunidades em capitais diferentes: a Ilha de Deus, em Recife e o Boqueirão, em São Paulo, numa fricção constante com referências pessoais das atuantes nos laboratórios de ensaio, ou como intitulo, laboratórios mitodológicos.

Em meados de 2012, após a montagem de Homens e caranguejos, investiu-se em Salema – Sussurros dos afogados. O processo de criação deste espetáculo teve como motor o universo poético de mar, amor e morte, sugeridos no texto dramatúrgico O Capataz de Salema, de Joaquim Cardozo. Neste contexto de montagem, as proposições cardozianas foram tratadas por um prisma mítico e se aproximam de dramaturgias afins, como Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues e Electra Enlutada, de Eugene O’neil, obras em que o mar é o grande devorador da vida e senhor das grandes transformações.

Na conexão com o universo imagético proposto pela dramaturgia e obras afins, fui solicitando, em laboratório, paisagens internas dos atuantes por meio de diversos procedimentos mitodológicos, dentre eles a Alquimia dos elementos, que consiste em construir ensejos corporais por meio do contato com os elementos naturais que compõe o próprio corpo. Em tese, explicito:

 

Entendendo que o corpo humano é uma síntese do cosmos, uma espécie de microcosmos e que o cosmos é formado por quatro elementos que se combinam, todos esses mesmos elementos estão no corpo. Sendo assim, água, terra, fogo e ar, atuam como hormônios para imaginação, como no dizer bachelardiano (2006), ampliando o rito das polaridades, potencializando as imagens e as preenchendo de gradações e sentidos. (LYRA, 2011, p. 372)

 

Complexificando a lida consigo mesmo, propus o deslocamento da paisagem interna para a paisagem da natureza contígua às pulsões sugeridas pelo texto dramatúrgico, daí partimos para a jornada artetnográfica, sendo escolhido o Pontal Leste na Ilha do Cardozo, no sentido de potencializar em contexto de alteridade, o constructo da encenação. Sobre a jornada artetnográfica afirmo:

 

Após o procedimento A Mística, onde artistas deparam-se com expectativas e reflexões, mapeando referências sobre o mito-guia do processo criativo, desemboca-se na I Jornada Artetnográfica, fase onde se dá um primeiro momento de trânsito destes mesmos artistas em comunidade ressonante com o leitmotiv processual levantado no coletivo. No decorrer da I Jornada Artetnográfica capta-se toda sorte de imagens para criação, entendendo esta observação como uma ação comprometida com o ato de observar, sendo, concomitantemente o artista observado. Nesta interação com a comunidade há decerto, a abolição da causalidade linear, ou mesmo o tratamento da comunidade como uma mera fonte, mas antes, fomenta-se um terreno comum de compreensão entre o observador e o objeto que observa. Sendo um procedimento estreitamente ligado ao Pressuposto Artetnográfico, a I Jornada artetnográfica é fase do exercício hermenêutico propriamente dito, o cruzamento de experiências, de permuta com a comunidade nas suas diversas dimensões, estabelecendo vínculos e vivenciando seu cotidiano e suas ações estéticas em troca de vivências artísticas estimuladas pelos artistas em campo. Durante esta fase processual, investe-se em toda sorte de mídias de registro da experiência, desde escritos em livros de artista a imagens gravadas ou filmografadas, sem compromisso com a linearidade espaço-temporal, a exemplo das experiências surrealistas. (LYRA, 2011, pp. 359-360)

 

Partindo desse princípio, o grupo de artistas-pesquisadores da ELT foi a campo na comunidade pesqueira do lugarejo, uma pequena área ocupada por treze famílias, de vida simples, onde o mar se apresenta como grande parceiro fonte de alimento e ao mesmo tempo grande senhor da morte, vivenciando o cotidiano de pescadores e suas famílias, as estratégias de sobrevivência, o ritmo da vida, assim como conviver com o mar: seus sons, silêncios, sua presença incontornável. 

Esta experiência vivida em campo pressupôs a atuação num plano liminar entre o real e o ficcional, a atuação de um ator de f(r)icção, um ator-cartógrafo, que vai traçando paisagens na relação com “o outro”. Longe de seguir uma reta de fatos, essa cartografia revela-se em pedaços, em justaposições instáveis, onde a realidade não é um dado somente, a realidade transcende, atingindo a subjetividade dos sujeitos. Desta trança artetnográfica urdida entre artistas e comunidade é que se fiou o espetáculo.

Há de se destacar que no contexto da artetnografia  desenvolvida na Ilha do Cardozo, a cartografia delineada pelos atores / artetnógrafos teve como suporte germinal o já citado Livro de Artista, uma espécie de diário de registros em campo de cada artista envolvido nos processos, que traz em si, as paisagens traçadas na pesquisa com a alteridade, expressando afetos e os mundos vivenciados pelos artistas e ‘seus’ outros, mas também aspectos conceituais e objetivos da pesquisa, como dados históricos, reflexões teóricas. 

Semelhante aos Cadernos de Campo do antropólogo, o Livro de Artista artetnográfico, não é algo que possa ser escrito ao mesmo tempo do encontro compartilhando com os outros suas vidas, no cotidiano ele resulta de outro instrumento: o caderno de notações. É no caderno de notações de campo, onde o artetnógrafo costuma registrar dados, gráficos, imagens, anotações que resultam do convívio participante e da observação atenta do universo social onde está inserido, é o espaço onde situa o aspecto pessoal e intransferível de sua experiência direta em campo, os problemas de relações com o grupo pesquisado, as dificuldades de acesso a determinados temas e assuntos nas entrevistas e conversas realizadas, ou ainda, as indicações de formas de superação dos limites e dos conflitos por ele vividos, embora carregue um maior teor de subjetividade na escritura, em analogia com os cadernos de campo antropológicos.

Faz-se necessário afirmar que Livro de Artista é uma apropriação minha de termo advindo do campo das Artes Visuais, e que se traduz como livro-objeto, numa proposta de interação entre arte plástica e literatura, um veículo para ideias de arte e obras de artistas, com forte caráter biográfico. Nas Artes visuais, o significado peculiar que o Livro de Artista adquire é que não tem como objetivo estabelecer uma relação mecânica, descritiva, entre texto e imagem, mas expressar afetos dos artistas na interação com o mundo.

 

 

Por meio destes escritos e experiências em laboratório se foi alimentando a vida da cena, adensando o ar que envolve a trama de O Capataz de Salema, as suas personagens que respiram a solidão, a dificuldade em superar os limites que a memória de uma existência de miséria traz. Num estado de f(r)icção, as atores puderam ver a si próprios, fundindo a seus próprios contornos os contornos de Luzia, do Capataz João, de Sinhá Ricarda, do Mar, as personas cardozianas. Com a lente dos mitos escolhidos por cada ator para contribuir na construção dessas figuras, remontaram emoções primordiais.

Esta breve incursão na criação de Salema, leva-nos a crer no processo mitodológico como um caminho de reconciliação entre poderes da imagem e do símbolo e os poderes do raciocínio na criação cênica, isto é, a interpenetração entre as vias lúdica e intelectiva. Também nos faz crer na continuidade entre os imaginários do ator e de suas máscaras, ligando trajetos pessoais, subjetivos a emanações culturais objetivas do meio cósmico social na pesquisa artística, incluindo aí: sons, palavras, músicas, gestos, imagens oníricas, imagens poéticas, que compõem o trajeto antropológico pessoal e a cultura. A Mitodologia em Arte preconiza assim uma pedagogia do (des)envolvimento interior, onde a ação de desenvolver-se estava intimamente ligada à ação de envolver-se do atuante com o processo de criação, procurando restaurar sua realidade imarginal (imagem e margem), no cultivo da imaginação e na fusão corpo-alma-espírito. 

 

Referências bibliográficas

 

BIÃO, Armindo, CARREIRA, André & TORRES NETO, Walter lima (orgs). Da cena contemporânea. Porto Alegre,RS, ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, 2012.

DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, Difel, 2004. 

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário.  São Paulo, Martins Fontes, 2002.

_______________. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa, Editorial Presença,1990.

GARCIA, Stella. Salema – Sussurros dos afogados: livro de artista. Inédito, 2012.

LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. Guerreiras e Heroínas em Performance; Da Artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas. 2011. Tese (Doutorado em Artes Cênicas), Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2011.

____________________________________. Mito Rasgado; Performance e Cavalo marinho na cena In Processo.  2005. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas), Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2005.

TURNER, Victor. The Antropology of Performance. New York. PAJ, 1988.

 

 

 

 

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