É dia pleno e o salto vermelho e seu curto vestido e pernas negras e fortes anunciam o fogo intenso do sol. Ela espera-nos profana numa rua de perdição. Também em noite de lua ela aparece e desaparece, escuta Dona Onete e tons sertanejos tocarem no estridente das caixas de som. Ela se exibe aos clientes entre luzes de gambiarra, mordidas maçãs e os amarelados dos abajours, desvela-se nua e trabalha e manifesta seus direitos em panfletos e preservativos derramados em nossas mãos. Ela faz da lida a oração. Quem é essa mulher? Sem dúvida, uma guerreira, alguém que faz de seu corpo matéria viva de luta pela sobrevivência. A prostituta habita recantos de nosso museu imaginário, avança nos desejos e grita extremo a um estado de liberdade contra o tão solicitado recato de nossos tempos obscuros e temerosos. Ela acaba por fundir e cindir profano e sagrado reafirmando o paradoxo profundo, alcançando dentro de sua contradição um grande potencial curativo d’alma. Saída da grota escura, acaba por desenterrar a deusa maior, entre o deleite físico, da paixão em seu corpo humano e o êxtase espiritual.
Pois foi justamente a prostituta tomada como mito-guia de criação, gerando hoje a experiência performática intitulada PUTAS DEI. O projeto desenvolvido graças ao Programa do Artista Residente, do Instituto de Artes da Unicamp e proposto pela Profa. Dra. Grácia Navarro, foi concebido e capitaneado pela artista Luciana Lyra, suscitando entre os performers participantes, alunos de graduação e pós graduação e artistas pesquisadores, questionamentos urgentes e atuais como: o machismo, os feminismos, a marginalização, a ditadura da beleza, a violência doméstica e laboral, o silenciamento, o feminicídio, a gravidez, o aborto, o estupro. Entre estudos de imagens das prostitutas sagradas, deusas do amor e da paixão, como como Inana (Sumária), Istar (Babilônia), Isis (Egito), Afrodite (Grécia), Vênus (Roma), Oxum (mitologia africana), ao trabalho de campo ‘artetnográfico’ com as prostitutas do Jardim Itatinga, na periferia de Campinas, passando pelas narrativas pessoais dos performers em torno das suas experiências singulares quanto à sexualidade, tramou-se três pontos numa só costura, numa atuação/encenação dita f(r)iccional, que congrega num só tempo o real e o modelado.
PUTAS DEI dá seguimento às investigações de Luciana Lyra acerca do feminino e dos feminismos e foi realizada por meio das práticas da Mitodologia em Arte e da Artetnografia, desenvolvidas em suas investigações artísticas e acadêmicas. A Mitodologia em Arte é um complexo de criação cênica, que utiliza como aportes aspectos da Antropologia da Experiência, estudada pelo antropólogo Victor Turner e da Antropologia do Imaginário, do sociólogo Gilbert Durand. Este complexo lida com forças pessoais que movem o atuante na relação consigo mesmo e com a alteridade, em retroalimentação, procurando dar vazão a um Teatro das Profundidades, que atinge camadas da psique pessoal e coletiva, na percepção inequívoca das margens sociais. A Mitodologia em Arte está intrinsecamente ligada à prática da Artetnografia, que se configura como prática realizada por artistas cênicos ao se deslocarem a contextos de outridade, para que nesta interação polifônica e subjetiva possam fomentar a criação da cena performática.
Das alcovas aos pontos, passando por uma marcha/manifesto e chegando ao desenterramento e coroação da prostituta como bandeira da liberdade, traçamos por meio do PUTAS DEI, uma trajetória larga de descobertas, medos, empoderamento, reafirmando a Mitodologia em Arte como caminho de criação que fomenta o autodesvendamento e o desvelamento do mundo que habitamos e que nos habita.